segunda-feira, 7 de abril de 2014


Algumas considerações particulares sobre a II Guerra



Eu me senti, sempre, muito à vontade, em meio àqueles senhores emocionados pelas lembranças, pois também sou filha e neta de ex-combatentes, herdeira de outras memórias.
A grande diferença é que meu pai e avô combateram nas hostes alemãs, portanto, se perfilaram do lado do inimigo... e aí cabe um parênteses, para nossa reflexão: inimigo de quem?
Para os meus, o inimigo feroz e sanguinário era Stalin que destruiu tantas vidas e tantas famílias na Rússia.
Tito seguia seus passos na Iugoslávia. Stalin foi um dirigente ditatorial que, a cada dia, deliberava com sua mente macabra e doentia, quantos russos deveriam ser eliminados naquele mês, naquela determinada cidade, sob a mera elucubração de que seriam “inimigos da Pátria”: pessoas que criticavam o regime comunista. Regime que, hoje se sabe, eliminou, aproximadamente, 22 milhões de cidadãos inocentes, e, dentre eles, meus parentes.(como relato em meu livro Tempo Submerso - Stalin, sobrevivemos ao terror)  Quando o pai e o avô vislumbraram uma oportunidade de lutar contra esse facínora e seus seguidores (o avô conseguiu fugir em 1920 da Rússia para a Iugoslávia, onde meu pai nasceu) alistaram-se no exército alemão, na esperança de exterminarem os comunistas). A Alemanha perdeu a guerra, e, minha família, as esperanças de libertar seu povo e voltar ao seu País.

Berlin 1945
Meu pai, Wladimir Saharovsky, nasceu em 1922. Saiu da Universidade, diretamente para as trincheiras já como tenente. Lutou contra os Partisan na Iugoslávia .  Foi ferido em combate. Ganhou a Cruz de Ferro por bravura em batalha. Seu pelotão, de cinquenta soldados, foi quase que absolutamente dizimado. Voltaram 14 rapazes vivos.
“Também, éramos todos muito jovens, ninguém havia se preparado para matar!” comentava ele, comovido.
Deve ser muito difícil preparar-se para matar ou morrer, assim, a contabilidade das inúmeras mortes que o pai ocasionara, perseguiram-noa vida inteira. Vladi deixou a guerra, mas a guerra nunca o deixou. Ela prosseguia acontecendo, rememorada em cada encontro de amigos, em cada esquina, em cada mesa de bar: os colegas mortos, os corpos destroçados, os morteiros, as granadas, as trincheiras, os canhões; o cansaço das longas caminhadas, a poeira, a sujeira, os piolhos, o calor infernal, o frio medonho; a incerteza do dia seguinte, as batalhas ganhas, as lutas perdidas, as cartas, os retratos, as estratégias, os atos de bravura. As tropas inimigas invadiam seus sonhos, seus cochilos, seus devaneios. Mesmo dormindo, ele estremecia, dava ordens imaginárias aos seus subalternos, soluçava. Anos e anos presenciei estes fatos, e agora, ouvindo as reminiscências dos pracinhas brasileiros eu pensava: tantas histórias, todas tão pessoais e tão parecidas! Mudara apenas o palco dos acontecimentos! Quantos amigos o pai fez em Jacareí, ex-combatentes, como ele, que, se houvessem se encontrado em campos de batalha, teriam se confrontado!
Eu nasci já no pós- guerra, num campo para refugiados, em Salzburg, na Áustria, onde os meus foram em busca de refúgio. Não poderiam ser repatriados, pois seu destino seria a morte. Imigramos para o Brasil no início dos anos 50. Getúlio tinha acabado de suicidar-se com um tiro no peito.
Escola russa do Campo de Refugiados Lager Parsh, Salzburg, Áustria, onde eu nasci
 A economia brasileira, deficitária como em todos os países da Europa, aos poucos ia se recuperando.  Nossa vida, aqui, nesse período, também não foi nada fácil. Eu, menina, não conseguia fazer amigos. Éramos vistos como os “russos que comiam criancinhas”. Fui hostilizada no Grupo Escolar. Levei apelidos desabonadores até o final de minha infância. Criei, numa forma que encontrei para me proteger, alcunhas brasileiras para mim, (Lucia da Silva, eu me apresentava e escrevia na identificação de meus livros e cadernos) para ser igual a todo mundo. Em vão! O sotaque, o tipo físico, as roupas, meu avô russo que sempre ia me buscar na escola, com receio de que eu me perdesse, minha família... tudo me denunciava!
Nessa época não se falava em bullying , então, não tenho muitas lembranças boas de meus primeiros anos escolares, onde, não apenas crianças me segregavam, mas alguns professores também. Foi uma época de superações diárias, que eu, estoicamente, cumpri.
E eu não era a única criança diferenciada, apartada, ridicularizada!
Crianças japonesas, alemãs, russas, lituanas, húngaras, búlgaras, bielorrussas, filhos de antigos imigrantes, algumas já nascidas no Brasil, prosseguiam sendo hostilizadas por conta da guerra que se consumou tão longe daqui! Todos nós, imigrantes, éramos os “bichos d’água”, “chucrutes”, “pastéis”: pessoas desqualificadas pela cor dos olhos, dos cabelos, pelo sotaque carregado. E que culpa nós tínhamos? Principalmente as crianças?
O rancor étnico é terrível, em todas as suas manifestações!
Carapicuiba,  S. Paulo foto década de 50
Morávamos numa vila na periferia de São Paulo, em pequenas vilas de casas geminadas. Tínhamos dois vizinhos e um deles era ex-pracinha brasileiro. Pessoa afável quando sóbria, mas quando bebia, e o fazia todos os dias, espancava sua mulher, espancavaseus filhos, saía à rua e jogava tudo o que encontrava à mão em nossa janela, chamando o pai para a briga: “Ô Chucrute, ô Chucrute! Saia, se for homem!”, gritava. E o pai, que também bebia, ficava transtornado, precisando ser retido à força, pela mãe e pelos avós. A radiopatrulha colocava ordem na vila, mas não prendia ninguém, por respeito aos “neuróticos de guerra” e, assim, ficávamos todos à mercê do próximo capítulo, sempre violento. Era um pesadelo noturno diário, que se repetia e repetia. Lembro-me de que os gritos da mulher, o choro das crianças, o som dos tapas atravessava as paredes do quarto e me aprisionava na angústia e no pavor... Mudamos inúmeras vezes, de casa, de rua, de bairro.
São Paulo na década de 50
A profunda tristeza dos meus, mais o medo, a insegurança, a inadequação nesses primeiros anos no Brasil, constituem, as minhas próprias memórias de pós-guerra!
Relato isso, porque as sequelas de uma guerra nunca terminam nos campos de batalha.Elas acompanham, igualmente, todas as famílias dos ex-combatentes, por muito tempo, às vezes, pela vida inteira! As guerras, todas, nos deixam sempre um “em haver” pessoal enorme, que governo algum consegue pagar! Aliás, a bem da verdade, nem se preocupa!
Pergunto a todos: e o que foi que o governo brasileiro fez pelos seus pracinhas que retornaram doentes, física e mentalmente? Os mutilados? Os desajustados? Os desempregados? Na pesquisa que fiz, para escrever este livro, encontrei inúmeros relatos de ex-combatentes que viraram mendigos, alcoólatras. Heróis da Pátria num dia, problema social esquecido, no outro. E isso não ocorre só no Brasil. As sequelas dessas guerras inúteis são vistas no mundo inteiro: na Rússia, os homens com algum tipo de deformação física ou psicológica encontram-se em todas as famílias. Nos Estados Unidos, idem. Na Alemanha, França, Itália, a mesma situação se repete e as guerras prosseguem! E as provocações prosseguem! E a intolerância prossegue. Prosseguem as mortes, as torturas, as mutilações. Triste humanidade, essa nossa! Triste herança para nossos filhos! Não podemos nunca glorificar as guerras, romanceá-las, enfeitá-las com atos de bravura. As guerras são todas más. As guerras dizimam o corpo e a alma das pessoas, e, o pior de tudo: as guerras não nos levam a nada, que não seja: sofrimento, renúncia, dor, ódio, revolta e destruição... e depois a reconstrução dos países, até que nova guerra ecloda, e a mesma história se repita!
Nesse mundo tão moderno no qual vivemos, a Paz precisa ser buscada por todos os meios. Guerra, nunca mais! (Ludmila)

2 comentários:

  1. Inimigo de quem?
    Da humanidade, da razão, do bem viver e conviver.

    Guerra é um nojo, algo muito mau e grudento que não sai mais e cria ramificações em todos aqueles que possuem algum vínculo com o soldado.
    Atos de bravura? Sim, quem está lá mata para não morrer, mas, na grande maioria das vezes são inocentes matando-se uns aos outros - há bravura nisso?
    Guerra é lamentável em todos os sentidos.

    ResponderExcluir
  2. Em tempo:
    Não sei se sabe, mas...
    Você, como austríaca, possui uma ligação com o Brasil desde nossa independência.
    Afinal, o amarelo de nossa bandeira - que nada tem a ver com o ouro - vem da Áustria, mais precisamente da casa dos Habsburgos, da qual pertencia a esposa de Dom Pedro I, Dona Leopoldina.
    Seus "coleguinhas" bem podiam saber disso na época, afinal:

    Você já fazia parte da história do nosso Brasil!

    PS.: Ah sim, o verde, claro, vem da casa dos Braganças, de Portugal - Dom Pedro - e não de nossas florestas.

    ResponderExcluir

Este comentário será exibido após aprovação do proprietário.