Annibal e Tio na Bomba D´água em Jacareí, na beira do Parahyba. Foto acervo da família Paiva Ferreira |
Janela sobre a memória (III)
“Quem diz o nome, chama. E alguém atende, sem
ter nada marcado, sem explicações, ao lugar onde seu nome, dito ou pensado, o
está chamando.
Quando isso ocorre a gente tem o direito de
acreditar que ninguém vai de vez, enquanto não morrer a palavra que chamando,
chamejando, o trouxer.”
(Eduardo Galeano em As Palavras Andantes)
Eu acho esse texto de Eduardo Galeano perfeito. Ele me emociona, a cada vez que o releio, porque, realmente, ninguem vai de vez enquanto permanecer vivo em nossas melhores lembranças. Publico, hoje, para vocês, um pedacinho das memórias do Seu Aníbal, um jacareiense com quem tive a alegria de conviver. Pai de um outro amigo muito querido, Dr. Celso Paiva Ferreira, avô de Eleonora, Rodrigo e Gustavo, crianças que povoaram de alegria uma parte importante de minha vida, quando meus filhos também eram pequenos, Seu Aníbal permanece sempre vivo enquanto nossa palavra, chamejando, o trouxer. (Ludmila)
“Vim para Jacareí em 1906, com seis anos de
idade. Viemos pra cá, do Rio de Janeiro, onde residíamos e onde meu pai teve
uma fábrica de gravatas, a primeira do Brasil.
Jacareí não tinha água e nem esgoto.
A água era transportada do Paraíba pelas
carregadeiras de água. Custava um tostão a lata. As mulheres formavam uma fila
enorme, uma atrás da outra, a lata sobre a cabeça. Era água pra tudo: pra
cozinhar, pra tomar banho. Era a única água que havia. Eu era moleque naquele
tempo, mas meu pai teve a informação do Coronel Onofre Ramos, que disse que era
bom arranjar diversas talhas para conservar a água boa. Então papai comprou
seis talhas, nas quais iam 30 a 40 litros em cada e fez um balcão para
acomodá-las. Elas permaneciam sempre cheias, pois quando acabava a água da
primeira, passava-se para a segunda, sempre reabastecendo a primeira.
O Coronel Onofre tinha uma sala de talhas, na
casa dele, que era bem conhecida. Era um cômodo grande onde se acomodavam doze
recipientes de barro enormes, de quarenta, cinquenta e até sem litros cada,
abastecidas pelas carregadeiras de água. A única forma de se purificar essa
água era passá-la através de um pano. Coar. Ela podia ser guardada por tempo
indefinido, pois não se deteriorava. Diziam, meu pai e meu avô, que a água do
Paraíba, inclusive, mais se purificava quanto mais tempo permanecesse guardada.
E isso era confirmado pelo Coronel Onofre Ramos, que usava a água apenas para
beber, gastando aproximadamente uma talha por mês. Assim, havia água lá que
seria tomada, aproximadamente, depois de um ano de ser retirada do rio.
Assim que viemos para Jacareí, nos hospedamos
no Hotel Central, de dona Carmen Rossi, lá onde hoje é o Cine Rosário. Depois
mudamos para a Rua Direita, hoje Rua Antonio Afonso, em frente à casa
paroquial.
Meu pai, que se chamava Antonio de Paiva
Ferreira, tinha comprado duas fazendas, num total de quatro mil e duzentos
alqueires, uma junto da outra. Eu e meus irmãos, Agostinho e Luiz, entramos no
Grupo escolar Carlos Porto, onde fizemos o primeiro ano. Em 1910, mudamos todos
para a fazenda e meu pai contratou um professor para nos dar a instrução de
ginásio. Naquele tempo, tinha aqui um ginásio muito conceituado, o Nogueira da
Gama, mas nós não pudemos frequentá-lo porque era difícil viajar da fazenda
para a cidade. Se a gente utilizasse um cavalo muito bom, levava-se três horas
e meia. A fazenda ficava no bairro do Jaguari. Agora foi tudo inundado pela represa.
Nós residimos na fazenda até 1924, data em
que meu pai a vendeu. O forte dela era a aguardente, mas colhia-se, como cultura
maior, o arroz, o feijão, a cana e os cereais. O café era cultivado apenas para
consumo próprio, mas a fazenda era de uma plantação de cafezais antigos.
Em 1907 ou 1908, papai comprou uma lancha com
o intuito de navegar no rio Jaguari, a serviço do transporte das safras de
nossa Fazenda São João da Boa Vista. Este rio, afluente do Paraíba, fica nas
proximidades de São José dos Campos. Foi necessário abrir canais nas muitas
corredeiras que havia no rio, porque a profundidade dele era muito inferior ao
calado da embarcação. Foi trabalho de muitos meses, em que tivemos que
pernoitar muito tempo nos barcos na beira do rio, por não haver, na época,
nenhuma habitação nas proximidades..."
Trecho do depoimento publicado em meu livro Jacareí Tempo e Memória, que será lançado no final deste ano de 2013
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