sábado, 10 de maio de 2014


Rosália de Oliveira Branco, memórias

Rosália de Oliveira Branco
“A minha ascendência é toda de Jacareí.
Os pais de meu pai e de minha mãe eram nascidos aqui.
Meu pai chamava-se Salvador de Oliveira Branco, mais conhecido na cidade como Vadô Branco. Ele era filho de José Branco de Oliveira e de Joana Maria da Conceição.
O meu avô era muito bonito, claro, de olhos azuis. Ele faleceu com 126 anos, lá nas terras dele, onde era a fábrica da Lavalpa. Antes disso, ele morava no Bairro do Poço.
 A minha avó chamava-se Joana Maria da Conceição. Meu pai era um homem forte, muito bonito e trabalhador. Ele era muito simples, analfabeto, mas tinha boas amizades, era muito querido. Ele morreu com 82 anos. Não lembro a data em que ele nasceu, mas sei que ainda tinha os escravos.
Minha mãe chamava-se Virgilina Maria da Conceição. O pai dela era José Bertolino de Morais e a mãe era Francisca da Conceição.
Minha avó Francisca casou com um homem muito ruim, que foi pra guerra do Paraguai e não voltou mais.

A Guerra do Paraguai foi o mais longo e sangrento conflito ocorrido na América do Sul. Durante 5 anos, o Brasil, a Argentina e o Paraguai, apoiados financeiramente pela Inglaterra, travaram esta batalha que traria sérias consequências. Ao final do conflito, o Paraguai estava destruído. A guerra também trouxe conseqüências para o Brasil: a popularidade de D. Pedro II caiu e a oposição aumentou com os movimentos abolicionistas e republicanos ganhando as ruas. Estava preparado o terreno para o fim da monarquia. Durante a Guerra do Paraguai, o Brasil viveu uma política de Conciliação (entre 1853 e 1868), que consistiu numa alternância entre liberais e conservadores no poder. Porém vários fatores, dentre eles, a própria Guerra contribuíram para o término dessa política.
Então ela foi morar com um escravo do Dr. Virgílio, casado com a D. Edwiges, que eram donos do Colégio Cônego José Bento, atual Escola Profissional, lá no Avareí. Com esse escravo, minha avó teve seis filhos: João, Bertolino, José, Belmiro, Francisco e a minha mãe, Virgilina. Como seu pai era negro, ela saiu uma morena muito bonita, de olhos muito azuis. Minha mãe morreu com 102 anos. Era uma mulher muito decidida, valentona, trabalhadeira. Teve onze filhos, nove mulheres e dois homens: Cesario, Valentino, Basilisa, Juventina, eu, Clarinda, Cecilia, Florisa e Idalina...Ela criou uma porção de sobrinhos, uma enteada, a Joaninha e muitos netos.

Largo do Avareí
Eu sou de 1.900. Nasci em 11 de novembro de 1.900. Sou a quinta filha. Nasci na fazenda de meus pais, no Rio Abaixo, onde hoje é a fábrica da SAADE, além da Dutra. A casa onde eu nasci ainda existe. Meu pai vivia da lavoura: feijão, milho, arroz. Tinha também muito gado. A fazenda era muito grande. Papai tinha colonos. Ele beneficiava arroz, fubá, socava café, destilava pinga. O alambique fabricava dois barris de pinga por dia. Na roça, todo mundo trabalhava, até as crianças, com a vassoura, puxando arroz, estendendo arroz. Na época não havia luz elétrica. Depois nós fomos morar na Fazenda Quatro Palmeiras, atual Cidade Jardim.
Ele vendeu a fazenda e viemos para a cidade, morar na Rua de Baixo (hoje Luiz Simon). Nossa casa era de esquina, muito grande, tinha uma porção de quartos e uma sala enorme. Moramos lá alguns anos, depois, mais ou menos em 1918, 1919, papai vendeu a casa e comprou uma chácara onde hoje é o bairro Jardim Leonídia. Tinha o Rio Paraíba de um lado, e de resto, era tudo pasto. A casa ficava na esquina oposta ao Hotel Piaza. Papai criava muito gado ali.
o "Esmaga Sapo"
Naquela época, as enchentes inundavam tudo. A gente ficava ilhada. Uma vez chegou a verter água até na cozinha de mamãe. Lembro-me das boiadas enormes que passavam em frente da chácara e atravessavam a cidade até o Mercado, que era muito sortido, mas a construção era muito feia, toda de tábuas. Atravessando o Rio Paraíba, indo para o São João, tinha algumas casas muito bonitas. Lembro-me da casa do Alfredo Schurig, que era muito rico, tinha um pesqueiro na beira do rio e uma porção de barcos. Do outro lado, também tinha uma casa muito boa, dos parentes do Seu Aníbal Paiva.

residencia do Sr. Agostinho Paiva, tio de Dr. Celso Paiva
O cinema tinha nos Quatro Cantos, no lugar que hoje tem a farmácia. Depois foi a casa Zonzini. Às vezes, a gente ia no cinema, que era mudo. O filme passava enquanto a Elisita Mercadante tocava piano. A imagem do filme era muito ruim, mas a música era muito boa!
A ponte era muito feia, de metal e o resto do bairro era só pastos.
As recordações de minha infância são todas tristes. A gente trabalhava muito, quase não saía pra nada. Tanto meu pai como minha mãe eram muito severos e a vida bastante sacrificada. Lembro que meu pai ia a cavalo pro litoral. Atravessava a serra a cavalo. Pousava na Serra e então descia pro
litoral. Dizia pra gente que era uma viagem muito perigosa, que não dava pra levar a família. Eu mesma só conheci a praia com seis, sete anos de casada, já com quatro, cinco filhos...


Quando eu completei 12 anos, eu entrei na escola, no grupo escolar Carlos Porto, onde eu aprendi um pouco. O nome de minha professora era D. Cássia. Nessa época, a gente morava na Rua Luiz Simon, no fim dessa rua, perto do Santo Cruzeiro. Eu passava todos os dias pela casa de comércio do Mercadante. Lembro muito da Bolívia Zonzini, que foi amiga de minha irmã, da Clarinda. Eu lembro que as duas puxavam junto a fila da escola. Eram tão bonitinhas! A Bolívia era branquinha, branquinha, magrelinha, tinha o cabelo liso, cortado na altura do queixo. O pai dela colocou o nome dos estados da América nos filhos todos.
Eu não tinha amigas, não saía. O passeio era ir até a missa e da missa voltar pra casa. O serviço de casa era muito. A gente socava café, canjica, naquele pilãozinho (aponta o pilão no canto da sala). A gente tinha que buscar água no Rio Paraíba. Muitas pessoas também tinham poço em suas casas.

Grupo de cavaleiros no início do séc passado
Meu pai tinha muita amizade com um homem muito rico, o Chico Leitão. Eles saíam para fazer caçadas. Saíam 8, 10 dias pro mato, caçando paca, capivara, enquanto as mulheres ficavam em casa cuidando da criançada, enxugando arroz, enxugando café, fazendo aqueles tachos enormes de rapadura. Eu ficava olhando o melado engrossando. Era duro!
Eu tinha uma amiguinha que se chamava Cotinha. Ela morava no Avareí e era um pouco mais nova do que eu. Aí, quando ela tinha 14 pra 15 anos, ela começou a gostar do Zé Theodoro de Siqueira. Ela namorou um pouco com ele, mas não queria casar. Naquele tempo, as moças casavam com 15, 16 anos. Era costume. Foi quando eu o conheci. Nós namoramos só três meses e já casamos. Foi em 1920, no dia 1º de maio. Meu casamento foi igual a um batizado. Não teve festa nenhuma, porque minha sogra tinha morrido 15 dias antes e os convites do casamento já estavam todos distribuídos. O José Theodoro era de uma família de Salesópolis. Era de uma família muito grande também.

Rua Rui Barbosa
Se eu me casei apaixonada?
E dá para apaixonar em três meses? Naquele tempo não tinha disso de as pessoas se apaixonarem. A moça olhava o rapaz duas, três vezes e já era pedida em casamento e logo já ia pro altar. Eu casei mesmo por influência da minha mãe. Ela preocupava-se demais com aquele monte de filhas...que podia morrer antes de meu pai, que ele ia colocar outra mulher em casa, que podia não ter paciência com a gente. Então queria nos ver todas casadas, logo, logo!
Bom, a gente se casou e fomos morar lá onde hoje é o Banco Real. A casinha era feinha, tinha um portãozinho todo cheio de mato em volta, e aquela terra mole, afundando. Os terrenos lá não tinham nenhum valor!  Moramos ali até 1925, 1926. Com muito trabalho e as economias, compramos uma chácara muito bonita, cheia de morros, na casa onde ainda eu moro.
Beco do Caranguejo ou do Marreli. As terras da chácara de Dona Rosália ficavam atrás
O Zé Theodoro comprou a chácara de um padre de São Paulo, o padre Nicola. Ela era toda plantada de uvas de várias qualidades, tinha muitos pés de ameixa, abacate, manga. Nossos vizinhos de terra eram Manoel Teixeira, que morava do lado de lá (perto da Caixa D’água) e o Joaquim Cachuté. Passados alguns anos, o Joaquim resolveu lotear o terreno dele. Aí começaram nossos problemas. O pessoal começou a invadir nossas terras, roubar frutas. O Zé ficou desgostoso e loteou também, no ano de 1940. Essas ruas aqui do bairro são todas dos parentes do José: João Theodoro foi seu irmão, Francisco Theodoro foi seu pai e Rosalina de Siqueira, sua mãe. Eu me casei e comecei a ter filhos. Tive onze, como minha mãe, e, como minha mãe, nove mulheres e dois homens: Otília, Odila, Virgínia, Amasilis, Dinorá, Manoel, Roberto, Mercedes, Eunice, Dora e Rosilene. Todos os meus filhos nasceram em casa, com parteira, inclusive, duas meninas, eu tive sozinha.
Quando as crianças ficavam doentes, a gente levava para a farmácia do seu Rodolfo de Siqueira, pai do Américo e do Odilon. Era uma farmácia muito boa, grande, e era o seu Rodolfo que receitava os remédios. Tinha um médico, o Dr. Novaes, que já era velho, meio careca, e morava na esquina da Lúcio Malta, onde depois morou o Dr. Vergueiro, mas quem resolvia os problemas das crianças era mesmo o seu Rodolfo.
Eu me lembro muito bem da gripe espanhola aqui em Jacareí. Foi um horror! Morria tanta gente que nem dava tempo de enterrar.


 A gente ficava tudo dentro de casa, com medo de sair para a rua e pegar a doença. Tudo era passado na água fervendo: as roupas, os pratos, os talheres. Água também a gente fervia pra beber. Sei que teve outra epidemia que matou muita gente, que o povo comentava. Diziam que era a bixiga. A doença dava umas feridas feias, que marcavam as pessoas, que chamavam de bexiguentos, mas dessa não tenho muitas lembranças, não. Acho que essa foi nos tempos de minha mãe, ela que comentava com a gente.
Minha vida de casada também foi muito dura, tão dura quanto a de solteira. Criei meus onze filhos sem a ajuda de ninguém. Levantava às 4 horas da madrugada, fizesse chuva ou sol, para tirar leite. Um pouco antes, dava de mamar para a criança. Quantas vezes não encontrei meus filhos debaixo da cama, cansados de chorar... quantas vezes não tirei do chiqueiro, todos sujos, indo atrás de mim. Era uma vida muito triste. Só ter filhos e trabalhar. O marido não queria nem saber! Todas as mulheres levavam essa vida sacrificada: tirando leite, fazendo queijo, olhando as crianças. A mulher, na verdade, era uma empregada do marido. Eles vestiam-se bem, terno de linho bem passado, arreavam seu bonito cavalo, vinham pra cidade e só voltavam no dia seguinte...
E o que eles faziam? Perguntei.  Sabe lá Deus! foi a resposta.
Eu tive um irmão, o Cesário de Oliveira Branco, que foi um homem muito rico. Ele teve um enorme depósito de madeira e uma serraria ali onde hoje é a Rua Ramira Cabral. A central (Estrada de Ferro) entrava na serraria dele para descarregar aquelas toras imensas de madeira. Ele teve fábrica de meias, várias casas. Depois, deu um revertério na vida dele e acabou na miséria. Perdeu tudo.

Serraria Conceição
Na época, quem guardava dinheiro aqui era o Nicolau Mercadante. Todos os nossos amigos guardavam dinheiro com ele, sem recibo, sem documentos, na confiança. Ele era o Banco da época. Meu marido nunca guardou.  Ele emprestava, cobrando um jurinho de nada. As lembranças boas que eu tenho são das festas religiosas. As do Divino Espírito Santo duravam oito dias. Os festeiros davam comida para o povo até o último dia. Era armada uma mesa que pegava desde a esquina, onde era a casa do Dr. Marrelli, até a porta do Cinema Rio Branco. Serviam arroz, feijão, um mundo de carne... Vinha aquele povaréu com os filhos, avançava na comida que acabava num instante! A festa da Nossa Senhora da Conceição também durava oito dias. Queimavam fogos no meio do povo. Tinha música, serviam biscoitos, aqueles biscoitos de rodela com café.
Rua Alfredo Schurig enfeitada para a Festa da Conceição
Outra festa que vinha muita gente era a da Carpição. Era uma festa religiosa com procissão que acontecia sempre no mês de agosto. Era uma festa para a Nossa Senhora. As pessoas faziam piquenique, iam namorar. Uma festa muito alegre que durava o dia inteiro.
Tinha o Carnaval também. No Carnaval as festas aconteciam no Largo da Matriz. Era uma brincadeira com muita lama, perfume e confete. Mamãe não deixava a gente ir, não. Era muita confusão! Sabe, minha filha, eu não tenho saudade nenhuma daqueles tempos! Prefiro a vida como ela é agora!”

2 comentários:

  1. E assim ia se formando a população jacareiense.
    Vida dura, sem infância!

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  2. Da.Rosaria,avo da minha amiga Marilena Masiero Paris....Lendo sua história,lembrei-me de minha mãe que hj estaria fazendo 106 anos e ,que conheceu esta senhora e teve uma vida parecida....

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