terça-feira, 26 de julho de 2016


Introdução Jacareí: Tempo e Memória

Rua olímpio Catão, Jacareí


“Na realidade, não há percepção que não esteja impregnada de lembranças” (Bergson)

Este é um livro de memórias.  Memórias de pessoas que viveram em Jacareí e que tive o privilégio de conhecer e de ouvir. Pessoas para quem eu era uma completa estranha, mas que, assim mesmo, me receberam em suas casas. Homens e mulheres que permitiram que eu entrasse e com eles vasculhasse esse fantástico território do passado, em busca de recordações: algumas muito vívidas, outras, apagadas, escondidas nos labirintos secretos da mente e que, de súbito, saltaram, afloraram, pediram voz e espaço em suas narrativas.
Estabeleceu-se entre nós, então, um vínculo de afetividade, como ocorre entre velhos amigos. Minha ida às suas casas era sempre uma comemoração. Recebiam-me com bolo, café, fotografias, velhos diários, receitas e muita vontade de conversar. Quantas vezes, entrevista encerrada e passado algum tempo, procuravam-me para entregar anotações com detalhes, que na hora lhes fugiram, e que julgavam importantes: o nome esquecido de uma vizinha, uma data que viera à lembrança depois do fato relatado, um causo que deixaram escapar, uma foto que encontraram em seus guardados!  Raramente eu saí de suas casas de mãos vazias. Trouxe comigo e guardei com todo o cuidado os presentes que recebi: jornais da época, revistas, documentos, recortes de notícias, que hoje torno públicas através deste livro.
A narrativa oral é muito diferente da escrita.
A escrita permite-nos idas e vindas, acertos, ajustes, intervenções póstumas, pesquisas. A narrativa não! O ato de narrar flui através do retorno a vivências, sentimentos, emoções. É a delicada revisão de etapas de nossa vida que já foram vencidas. No caso particular de meus entrevistados, todos septuagenários, o diálogo esbarrava também na dificuldade de trazer alguns fatos, de imediato, à memória. Tropeçava na voz trêmula, na vista frágil, no coração acelerado pelas recordações, pelas saudades dos que já se foram; pelas cicatrizes muitas vezes reabertas. Apoiava-se na necessidade de momentos de silêncio e, muitas vezes, na interrupção do relato, pelas lágrimas involuntárias derramadas: deles e minhas!  Muitas histórias não foram registradas. Eu as ouvi em confiança, como confidências. Essas eu guardei só para mim: privilégio de quem escuta!
E como iniciei este projeto?
A resposta é simples: foi por amor a essa cidade onde escolhi viver e que me ofereceu tantas oportunidades de me tornar quem hoje sou: uma pessoa realizada e feliz, com muita história, eu também, para contar!
Eu sabia sobre Jacareí, quando aqui cheguei, em 1965, apenas que era uma cidade muito antiga (fundada em 1652, elevada à vila em 1653) banhada por um imponente rio, o Paraíba . Uma vila que cresceu e se espalhou por um vale, entre duas majestosas cordilheiras: a Serra do Mar e a Serra da Mantiqueira. Um arraial que, no passado, foi rota de bandeirantes e terra de muitos barões do café, mas o que mais? O que mais?
 Meus filhos começaram a estudar e a trazer como tarefa pedidos de pesquisas sobre a fundação da cidade, sobre as origens de seu nome, seus primeiros habitantes. Confesso que não sabia por onde começar a busca para auxiliá-los e, consequentemente, compreender, eu também, este lugar.
Não havia livros sobre a história de Jacareí. Não existia o computador. As informações eram muito vagas e genéricas. Assim, fui me aproximando, aos poucos, de pessoas que poderiam me dar alguma orientação. Era o início da década de setenta.
A Prefeitura, à época, promovia concursos literários, festivais de música, saraus de poesia, mostras de arte, cursos de Folclore: um território propício para minhas investidas culturais e conquista de novos amigos. Inscrevi-me e fui premiada no concurso literário que tinha como tema A cidade e o rio. Conheci então, poetas e jornalistas.  Minha crônica, Cidade Cidade Ci  foi publicada no jornal O Combate. Antoninho Lorena, redator chefe, gostou tanto que me convidou para ser cronista. Aceitei e não parei mais de escrever!
Matriculei-me no curso sobre o Folclore do Vale do Paraíba, ministrado pelo querido Francisco Pereira da Silva, carinhosamente chamado por todos de Chico Triste. Encantei-me com ele e com os causos e lendas da região. Conheci, então, dona Ruth Guimarães, e, com eles, descobri um novo Vale do Paraíba.
Comecei a frequentar a única livraria que há pouco fora inaugurada: Livraria Progresso. Eu e Eunice Ricco da Costa, sua proprietária, atriz, poeta, pintora, mulher muito à frente de seu tempo, tornamo-nos amigas para o resto da vida. Eunice foi convidada, por Antonio Nunes de Moraes, a ocupar o cargo de diretora do Departamento de Cultura Artística da Prefeitura e me levou para integrar o Conselho recém-formado. E assim passei a pertencer a um grupo de pessoas muito interessantes, imbuídas do propósito de valorizar e divulgar a cultura em todos os seus segmentos e que falavam de uma Jacareí fantástica, que existiu no passado. Entre elas estava o Sr. Odilon de Siqueira, ex-prefeito em duas gestões e que conhecia muito bem a história que eu buscava. Passei a frequentar sua residência onde ele foi me apresentando, aos poucos, a documentos, livros, anotações, fatos e fotos desta cidade conhecida como Athenas Paulista. Foi ele quem patrocinou o primeiro encontro realizado na casa do Sr. Jarbas Porto de Mattos, com a presença do Professor Décio Moreira, que resultou na gravação da primeira entrevista sobre a Memória Oral de Jacareí. Ela aconteceu no início de 1978, e foi publicada no jornal O Jacareiense, em 3 de abril do mesmo ano: um sucesso absoluto! Choveram cartas, bilhetes, ligações para o jornal pedindo outras matérias como aquela. Os moradores da cidade também queriam conhecer melhor a sua história. Entusiasmados com a repercussão inesperada, o Sr. Odilon fez uma lista de pessoas, de sua faixa etária, e a entregou para mim. Era muito importante eu conhecê-las, ouvi-las e divulgar, também, suas lembranças. Foi assim que tudo começou. Nos primeiros encontros, ele me acompanhou, depois, passei a fazer as visitas sozinha. Minhas reuniões com os antigos moradores de Jacareí prosseguiram por quase vinte anos. As entrevistas passaram a ser publicadas em edições de aniversário da cidade, pelo Diário de Jacareí, sempre com grande repercussão entre os leitores.
Hoje, neste volume, partilho com vocês as reminiscências desses homens e mulheres que aqui nasceram, viveram e morreram e que abrangem cinquenta anos da história de Jacareí. A eles, o meu profundo agradecimento, respeito e admiração.
São eles os verdadeiros autores desse livro.

                                                                     Ludmila Saharovsky

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