domingo, 19 de janeiro de 2014


Sabores do Passado



Nos séculos 16 e 17 - ao contrário das Capitanias que foram fundadas do litoral nordestino, onde o cultivo da cana de açúcar prosperou e produziu riquezas, São Paulo de Piratininga e as vilas adjacentes eram muito pobres, forçando os colonizadores a criar alternativas de nutrição com o que havia disponível. Assim, muitos dos hábitos alimentares indígenas foram sendo copiados pelos portugueses e pelos primeiros paulistas que aqui nasceram. Seu cardápio diário era constituído por carne de caça, peixes, legumes, raízes, pinhão, frutas nativas e milho, muito milho, que se transformou na base para muitos pratos que continuam sendo consumidos até hoje: canjica, curau, pamonha e farinha de milho. Este era tão utilizado, que o historiador Sérgio Buarque de Holanda chegou a chamar São Paulo de “civilização do milho”.
O tempo foi passando e, através do comércio estabelecido com o além-mar, os primeiros colonizadores foram introduzindo as carnes de animais domesticados (os bovinos e as aves) e os usos do açúcar (rapadura, a cachaça, etc.) à sua mesa, enquanto os escravos africanos apresentavam-lhes as pimentas, o dendê e o leite de coco.
Já em nosso litoral, desenvolveu-se outro ramo culinário, com a alimentação baseada na pesca e preparo do peixe, que havia em profusão: a cozinha caiçara.

Mas, voltando nosso olhar para a vida dos colonos portugueses aqui chegados, compreendemos que foi nas primitivas cozinhas e no seu entorno – hortas, pomares e quintais – que as senhoras portuguesas precisaram adequar seus hábitos europeus à realidade brasileira, criando uma nova arte culinária e outra dinâmica funcional dentro de seus lares. Assim, elas trocaram os fogões
com chaminés de estilo francês e os cardápios impossíveis de executar por falta de mantimentos adequados, pelos costumes das mulheres índias e negras, de cozinhar fora da casa, limpando e cortando a carne nos jiraus (armações de madeira), e utilizando os métodos de assá-las ou defumá-las no moquém (grelhas de varas). Os tachos de doces, de confecção demorada, como a goiabada e a marmelada, ganharam as trempes dos fogões à lenha construídos em cozinhas que ficavam fora do bloco da casa principal.
Apesar da enorme quantidade de árvores na região, o consumo de frutas frescas não era costume que prevalecia. Como o açúcar branco era um produto presente apenas às mesas mais abastadas, as compotas, os doces em calda, e os doces secos, eram considerados comidas que elevavam o “status social”.

“Parodiando o conhecido adágio de Brillat-Savarin “dize-me o que comes e te direi quem és”, que já foi transformado em “dize-me o que comes e te direi de onde vens”, Sophie Bessis assim afirma: “Dize-me o que comes e te direi qual deus adoras, sob qual latitude vives, de qual cultura nascestes e em qual grupo social te incluis”. A leitura da cozinha é uma fabulosa viagem na consciência que as sociedades têm delas mesmas, na visão que elas têm de sua identidade.” (apud Maciel, M.E. 2005, pág.50)

Em seu texto “Identidade Cultural e Alimentação” Maria Eunice Maciel nos informa:

“A cozinha de um grupo é muito mais do que um somatório de pratos
considerados característicos ou emblemáticos. É um conjunto de elementos referenciados na tradição e articulados no sentido de constituí-la como algo particular, singular, reconhecível ante outras cozinhas. Ela não pode ser reduzida a um inventário, convertida em fórmulas ou combinações de elementos cristalizados no tempo e no espaço. Entendendo-se a identidade social como um processo dinâmico relacionado a um projeto coletivo que inclui uma constante reconstrução, e não como algo dado e imutável, pode-se afirmar que essas cozinhas agem como referenciais identitários, estando sujeitas a constantes transformações.
A construção da cozinha de qualquer unidade de pertencimento (seja um
país, seja uma região, um grupo étnico ou outro conjunto) segue caminhos diferentes, dadas as suas condições históricas. Assim, ao se focalizar essas cozinhas, deve-se, necessariamente, levar em consideração o processo histórico-cultural, contextualizando e particularizando sua existência.
No entanto, a questão de delimitar espacialmente uma cozinha não é tão
simples como pode parecer a uma primeira vista, pois, muito além das fronteiras geográficas, que seriam seu suporte físico, ou da origem de seus elementos, ela implica a significação que é dada a certos pratos que irão caracterizá-la.” (Maciel,M.E. 2005, pág.50)

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